Texto
decorado e ensaiado. Cada gesto e olhar sistematizados para transparecer
emoções que estão além de si mesmos. A respiração entrecortada, o nervosismo. Uma
plateia ansiosa aguarda do outro lado do tecido vermelho, que separa o mundo
real e diário das grandes criações teatrais.
Se dá o
último dos três sinais sonoros, derivados do Bastão de Molière, anunciando o início do
espetáculo.
Não existe mais o ator. Existem, agora,
Hamlet, Ophelia, Édipo, Julieta...
Michael Stuhbarg como Hamlet e Lauren Ambrose como Ofélia |
O palco, no cinema, é estar em frente às câmeras que recortam
os gestos e movimentos, focando naquilo em que o espectador deve prender sua
atenção. Atuar em cinema é ser mutilado, acreditavam os primeiros atores
a migrarem dos palcos para as grandes telas.
Foi trabalho de D. W. Griffith, um dos pioneiros do
cinema e considerado como o criador da linguagem cinematográfica, convencer a sua
musa Lillian Gish e outros atores de que os cortes de câmera não os estavam
mutilando, que seus braços, pernas e faces continuavam no mesmo lugar físico de
antes. Que seus gestos, tão grandiosos no teatro, poderiam agora ser mais
singelos. Adaptar os atores de grandes tragédias gregas que tomavam palcos para as telas das câmeras não foi tarefa fácil.
Lilian e Dorothy Gish |
É atribuído a Griffith e Lilian, que viria a atuar no primeiro filme do diretor, “O Nascimento de Uma Nação”, a invenção de
uma nova forma de atuar no cinema. Do início do cinema mudo para a tecnologia 3D
que invade as salas atualmente, um processo de mutação constante vem acontecendo.
No entanto, é do final do século XIX que aparece um dos mais usados métodos de
interpretação, criado pelo teatrólogo, diretor e ator russo Constantin Stanislavski. O sistema,
como é chamado, é uma das principais sistematizações para o desenvolvimento da
interpretação do ator e, consequentemente, muito utilizado no cinema.
Para dar início à atuação, Stanislavski trabalhava sempre com uma
suposição. No livro "A Preparação do Ator",
publicado pela primeira vez em 1936, exemplificou: "Suponhamos que neste
apartamento tenha morado um homem que ficou louco, e levaram-no para um
hospício. Se ele tivesse fugido e estivesse atrás daquela porta agora, o que é
que vocês fariam?"
Valesca
Xavier Moura Jorge é atriz, pesquisadora e professora na área de
atuação, explica que antes de entrar em cena o ator precisa alinhar corpo, voz
e mente. “Seja em teatro, seja em TV, seja em cinema, o que o ator precisa ter
antes de entrar em cena é concentração. É o momento em que ele foca no
objetivo, no que ele tem que fazer. Muitas vezes em teatro as pessoas se
recolhem e ficam quietas no canto, alguns atores de cinema também, outros já
preferem uma concentração 'batendo' o texto com outro, mas existe sempre o
momento do focar.”
Stanislavski |
Segundo o
sistema de Stanislavski, é necessário o estudo
aprofundado do tempo, país, literatura, psicologia, dicção, entonação e alma do
personagem para que assim seja possível criá-lo, como também cuidar do próprio
corpo, como citado em sua obra "A
Preparação do Ator": “O grande objetivo é dar vida a
um espírito humano e expressá-lo em forma artística. Para viver o papel precisamos estar com nossa aparelhagem física e
vocal em perfeitas condições”.
A atriz Monique Benoski, que estuda na Academia de Artes Cênicas
Cena Hum, conta que em seu processo de construção procura encontrar características
autênticas de cada um de seus personagens. “Eu procuro pensar em
como é a personalidade da personagem, qual a sua idade, como ela cresceu, quais
são suas influências, por exemplo família e amigos, sua forma de aproveitar o
tempo... Isso quando estou criando a personagem que usarei em cena. Aí depois disso
penso no corpo e na voz”, conta.
Monique Benoski na peça "Rosa do Mangue" |
No vídeo a seguir vemos a preparação dos atores
da peça infantil "O Grande
Circo Saltimbamcos", em
que Monique representa uma galinha.
Ao dar vida a um personagem, o ator se apropria de seu próprio
corpo e mente como instrumentos. São suas lágrimas, no palco ou na tela, seu
rosto remoendo cada palavra e transparecendo cada emoção. Mas até onde vai o
ator e onde começa o personagem? Como separá-los?
Airen Prada Wormhoudt, psicóloga e professora de artes cênicas, explica que em algumas produções é necessário o acompanhamento psicológico como forma de suporte, para manter a saúde mental do ator. Este, porém, é um processo raro no Brasil. “Caso um ator vá representar um psicopata, por exemplo, ele terá que estudar a profundidade psicológica desse personagem para que ele saiba do que está tratando, mas a necessidade de acompanhamento sempre depende muito do ator, de como ele é consigo mesmo, da bagagem que ele tem e da sua estrutura psíquica. Existem atores que não precisam fazer nenhum tipo de acompanhamento porque conseguem separar muito bem o que ele está criando do que ele é. Agora, tem atores que, independente de ser um papel forte ou não, em função da sua estrutura psíquica ser mais frágil, podem se confundir com o que eles constroem”, comenta a psicóloga.
Monique acredita que se utilizar de fatos ocorridos na própria vida para
dar emoção ao personagem não é uma boa escolha de interpretação. “Acho que
existe muito ator que ao invés de criar motivos para que a tristeza ou a
felicidade venham de sua personagem, utilizam fatos da sua vida real. Não acho
essa atitude muito profissional, apesar de que possa funcionar para passar a
mensagem da cena. Encontrar a alma da sua personagem é o que faz um ator
progredir de um trabalho para o outro”, opina.
“O espelho deve ser quebrado, não serve para construção do
personagem, pois reflete o exterior e não o
interior”, afirma Stanislavski em sua obra, destacando a importância do contato do ator consigo mesmo. A representação e o eu do ator
muitas vezes possuem uma linha tênue, porém há uma linha. “Separar o eu
do que eu estou representando é um processo natural, quando você vai construir
um personagem, automaticamente já está criando e projetando algo que não
existe, é seu enquanto produto da sua criatividade, da sua imaginação e da sua
técnica, mas é algo, que pelo bom senso, não é você, é uma
outra vida, um outro papel. Claro, repleto de conteúdos que são seus, porque
é a sua criatividade, é o seu universo interior, mas é algo externo a você”,
finaliza a psicóloga.
Texto: Hellen Albuquerque
Reportagem: Caio Rocha
Vídeo: Eva Manzana
Edição de imagem: Isabela Bandeira Saciotti
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