O ator e o diretor de cinema na
construção do personagem
No cinema, posso ver tudo de perto, e bem visto, ampliado na
tela, de modo a surpreender detalhes no fluxo do acontecimento dos gestos (...)
para que o espetáculo do mundo se faça para mim com clareza, dramaticidade e
beleza.
Ismail
Xavier
Com seu surgimento nas experiências de pioneiros como
Louis Lumiére, o cinema registrava a vida e o habitual. Pessoas comuns,
operários de uma fábrica, chegadas e partidas em uma estação ferroviária. Cenas cotidianas que impressionavam os
espectadores pelo fato de estarem registradas, mas não demorou a que se
começasse a explorar o potencial ficcional que esta arte permitia.
Assim, como no teatro, o cinema começava a se exibir
através das faces daqueles que dedicam sua vida à arte da interpretação. No entanto, o ator teve de se adaptar, transformar seus gestos
expressivos e grandiosos que tinham como único fim o olhar de sua plateia, para
gestos que se tornariam recortados pelos olhos da câmera. Ismail Xavier,
teórico e professor de cinema brasileiro, em sua obra "Olhar e a
Cena" diz que:
"Com
o cinema, a percepção humana ganhou um acesso especial à
intimidade
dos processos - nele, a aparência é já uma análise. O close-up não é
o
lugar do fingimento, é uma presença que revela o que se é, não o que se
pretender ser
(inúteis as caretas dos atores)."
O plano close up, ou simplesmente close, é
caracterizado pelo enquadramento de câmera fechado em um único assunto ao qual
se quer chamar atenção, usualmente o rosto de uma pessoa. Este é sem dúvida o
enquadramento que mais expõe um ator em cena, a escolha destes cortes, assim
como do desenvolvimento do personagem é dada pelas mãos do diretor.
Para Luciano Coelho, cineasta curitibano e coordenador
do projeto de pesquisa audiovisual Olho Vivo, a criação de um personagem no
cinema se dá pelo desenvolvimento das cenas, que foram definidas no roteiro e
também no trabalho entre diretor e ator. “Eu acho que o personagem começa a ser
criado no roteiro, e termina de ser construído, tanto pela maneira que o
diretor encara esse personagem, como também na maneira como o diretor ajuda o
ator a construir o personagem”, explica.
Sobre este processo de construção do personagem, o
ator paulistano Horley Lopes, que atuou
no curta “Irreversível” e em várias publicidades, separa os diretores em dois
gêneros: “Existem diretores pacíficos e
outros com o personagem já pront9o em sua mente. Quando ele é pacífico você cria da sua forma e ele só faz alguns
ajustes. Agora, quando ele quer o personagem da sua forma, ele vai te
repassando e você vai criando, e ele vai moldando”.
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Anne Hathaway em "Os Miseráveis": o close é imperceptível |
Extrair do ator as emoções competentes a cada cena e
leva-lo a perceber os objetivos de cada momento dentro da história são alguns
dos desafios do diretor, a forma de se fazer isso varia com cada profissional.
Para Coelho, o diretor irá lidar com seus atores de acordo com a junção de seus
estudos e também da forma como ele interage com os outros no seu dia a dia. “Um
diretor não deixa de ser quem ele é quando ele lida com os atores, a forma que
você lida com as pessoas é como você vai falar com os seus atores. A direção do
ator é um fruto do estudo e das relações humanas, nós aprendemos a lidar com o ser humano no
dia a dia, saber como ele funciona. E acabamos levando isso para o processo de
preparação de atores e para a direção no set”.
O teórico Imail
Xavier, em uma palestra realizada no Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro
apresenta essa importância do diretor na colocação de significados para os
atores, pois apenas desta forma seria possível uma atuação que realmente
tivesse sentido. “Desde que a câmera
esteja presente as pessoas fazem teatro,
ou seja, desde que a câmera esteja presente representamos algo, deixando de ser
um mero registro e tornando-se cena”, diz. Horley Lopes vê
como uma das maiores dificuldades na atuação a falta de conexão com o
personagem. “As grandes dificuldades são
quando ele (o personagem) é muito diferente de você, pois sair e voltar ao seu
cotidiano todo dia é difícil, mas enquanto não há conhecimento de verdade sobre
o personagem, será muito mais complicado. Agora, quando você tem conhecimento
da ideia do diretor e toma conhecimento do personagem, se torna tudo mais
fácil...”.
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Uma Thurman e Quentin Tarantino no set de "Kill Bill vol. 1" |
No
cinema, um obstáculo para os atores é a ordem das gravações, que dificilmente
se dá de forma cronológica. “É comum no primeiro dia filmar uma cena do final do filme e
aí o começo você vai fazer lá no final das filmagens, então pelas filmagens
serem muito picotadas o ator precisa saber exatamente qual o estado de espírito
do personagem naquela cena que ele vai filmar no dia tal”, explica Luciano
Coelho. O cineasta também destaca a fragilidade de usar o próprio corpo para
criação, já que muitas vezes ficamos desconfortáveis com nosso próprio corpo.
“Imagine quando você escuta sua voz em um gravador, e diz: que voz horrorosa,
essa não pode ser minha voz. O ator tem que aprender a trabalhar com isso. O ator cumprindo o seu papel de interpretação é um ser muito
frágil, o diretor precisa ser a referência do ator para aquilo que ele está
fazendo, porque ele usa a própria imagem a própria voz, com os seus gestos,
então ele está em um constante estado de fragilidade”, completa.
Texto: Hellen Albuquerque
Reportagem: Natalia Concentino e Eva Manzana
Edição de imagens: Isabela Bandeira